Há cristãos que parecem ter escolhido uma Quaresma sem Páscoa (…)
Chegamos a ser plenamente humanos quando somos mais do que humanos, quando permitimos que Deus nos conduza para além de nós mesmos, a fim de que alcancemos o nosso ser mais verdadeiro.
Papa Francisco
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, nn. 6.8
Queridos irmãos e irmãs da nossa Igreja de Olinda e Recife,
Isso que o papa Francisco propõe para retomarmos a alegria do
Evangelho e vivermos essa plena humanização é a tarefa pascal de nossas
vidas. A celebração da Quaresma e Páscoa pode nos ajudar a viver esse
caminho. A Quaresma é um tempo muito querido para nosso povo. Os
cânticos penitenciais, o costume da via sacra, as procissões de Quaresma
e outras devoções são belos e guardam sua atualidade, mas devem ter
como espírito o Evangelho da alegria, como insiste o papa. Devemos nós
mesmos viver e testemunhar uma espiritualidade pascal. Como diz o
Evangelho lido na Quarta-feira de Cinzas (Mt 6,1-6.16-18), essa
espiritualidade deve basear-se no despojamento de nós mesmos (o jejum),
na solidariedade a todos os irmãos e irmãs (a esmola) e no
aprofundamento da nossa intimidade com Deus (a oração). E esse caminho
não pode ser apenas uma espécie de prática quaresmal que, chegada a
Páscoa, deixamos; tem de ser um modo de ser e de viver, permanentemente.
Durante toda a Quaresma, vamos ouvir várias vezes a palavra de São
Paulo aos filipenses, presente nas primeiras vésperas do Domingo:
Tende
em vós os mesmos sentimentos do Cristo Jesus. Ele, embora de condição
divina, não se prendeu ao fato de ser igual a Deus, mas se despojou de
si mesmo e tomou a condição de servo (Fl 2,5-6).
Habitualmente, interpretamos essa
kênosis (esvaziamento) do
Cristo como tendo sido vivida apenas em sua paixão. É claro que o foi,
mas, de fato, ele a viveu em toda a sua vida e essa foi a sua forma se
tornar servo, isso é, ministro. Então, o nosso ministério cristão
deveria ser um prolongamento dessa atitude do Cristo: despojar-se e
passar a servir verdadeiramente e de forma apagada. Isso não é apenas
uma proposta pascal para cada um interiormente, mas para a Igreja como
Igreja. Se queremos ser verdadeiramente fiéis a esse modo de ser de
Jesus, temos de verificar continuamente se nossa Igreja como Igreja está
vivendo isso. E isso é um desafio para mim, bispo, assim como para os
meus auxiliares e para cada um dos padres, diáconos e agentes de
pastoral. Estou convencido de que essa é a forma atual do jejum que Deus
pede de nós nessa Quaresma, não jejum apenas de alimento e, sim, de
tudo o que é aparência de poder, de prestígio e de triunfalismo
eclesiástico, infelizmente ainda presente em alguns de nossos meios.
O serviço da justiça, correspondente à noção bíblica da esmola, é
vivido por nós, especificamente, na Campanha da Fraternidade. Nesse ano,
o tema aborda um problema que nos comove e espanta:
o tráfico humano.
É difícil compreender como, em pleno século XXI e em um mundo como o
nosso, ainda possa acontecer essa barbaridade. Segundo a ONU, de 600 mil
a 800 mil pessoas estão sendo agora, nesse momento, submetidas à
escravidão. E o nosso país é um dos pontos de partida e de chegada dessa
tragédia. Situações como tráfico de mulheres, de crianças e
adolescentes, assim como de trabalhadores explorados podem estar
acontecendo quase sob nossos olhos, aqui na nossa cidade ou mesmo bairro
e precisamos estar muito mais atentos a isso e sermos mais capazes de
reagir e de lutar contra essa desumanidade. O lema da CF é sempre uma
motivação evangélica que deve inspirar nossa ação:
É para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5,1).
É essa solidariedade efetiva e permanente que deve fundamentar nossa
atitude de oração e de intimidade com Deus, renovadas nesse tempo
quaresmal e pascal pela maior frequência à Palavra da Bíblia e à
Liturgia.
As palavras e ações do papa Francisco têm chamado muita atenção de
cristãos e não-cristãos no mundo todo. Alguns tentam classificá-lo
ideologicamente, como se o evangelho fosse uma questão de direita ou
esquerda e pudesse ser vivido ou não de acordo com o modelo de uma
Igreja mais avançada ou mais conservadora. Se posso lhes dar uma palavra
de irmão mais velho e de pastor, garanto-lhes que não se trata disso
ou, ao menos, esse não é o ponto mais importante. Compreender assim o
papa seria ficar na superficialidade do mundo e não em uma leitura
pascal da fé e da nossa missão. O que o papa escreveu na
Evangelii Gaudium foi
um chamado evangélico a todos, sejam aos mais sensíveis ao hoje de
Deus, sejam aos mais apegados às tradições. Todos somos cristãos, todos
temos lugar na Igreja que deve ser católica, isso é, aberta a todos.
Nossa unidade deve se fazer no pleno respeito à diversidade. No século
III, São Cipriano de Cartago já afirmava:
A unidade abole a divisão, mas respeita as diferenças.
Entretanto, testemunhar ao mundo o amor divino presente e atuante é
obrigação de todos. E é nesse sentido que o papa cita Santo Irineu de
Lyon ao afirmar:
Na sua vinda, o Cristo trouxe consigo a novidade. E,
com a sua novidade, ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa
proposta cristã (EG 11). Então, não se trata de posição ideológica
ou, menos ainda, política e, sim, de um caminho espiritual a seguirmos,
cada um do seu modo e conforme seu jeito de ser, mas no mesmo espírito
missionário e pascal.
Na recente celebração da Quarta-feira de Cinzas lembrei que, nessa
Quaresma, recordamos que há justamente 50 anos nossa Arquidiocese
recebia como arcebispo Dom Hélder Câmara. Ele se tornou nosso pastor, em
meio ao Concílio Vaticano II, do qual ele era um dos mais importantes
realizadores. Retomar esse espírito não como uma volta ao passado, mas
para atualizá-lo no nosso mundo de hoje será o melhor modo de
testemunharmos que o Senhor ressuscitou verdadeiramente e continua
atuando entre nós e através de nós.
Desejo a vocês todos/as uma santa e fecunda Quaresma e uma feliz
celebração pascal. Invoco sobre vocês a bênção renovadora da Páscoa e os
abraço com amizade.
Dom Antônio Fernando Saburido, OSB
Arcebispo Metropolitano