Catarinense que fundou a Pastoral da Criança e do Idoso levou a missão solidária até o fim de sua vida

Os tremores de terra que devastaram o Haiti na tarde de terça-feira podem ter deixado mais de 100 mil mortos. Até ontem, 12 brasileiros inauguravam a lista de vítimas, que vai crescer na velocidade em que se removerem os escombros da capital, Porto Príncipe. Destes, 11 eram militares da missão de paz das Nações Unidas. E uma, a mulher que ensinou o Brasil a conjugar o verbo ajudar.

O terremoto silenciou a voz de uma catarinense ilustre: a médica pediatra e sanitarista Zilda Arns Neumann, que estava no país havia três dias, disseminando o trabalho da Pastoral da Criança. O corpo de Zilda será trazido do Haiti em avião da Força Aérea Brasileira. O velório e enterro serão em Curitiba, onde ela morou por mais de cinco décadas.

A tragédia na América Central roubou das crianças o sorriso que lhes garantia vida e esperança desde 1983, quando Zilda fundou a Pastoral da Criança, instituição ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

As notícias sobre o local onde a missionária estava no momento do terremoto ainda são desencontradas. Em uma das versões, ela caminhava pelas ruas de Porto Príncipe ao lado de soldados brasileiros quando foi atingida por destroços de um prédio. A sobrinha de Zilda, Lilian Arns Topanotti, que mora em Forquilhinha, no Sul do Estado, tem outra informação: a médica estaria palestrando para 150 religiosos, dentro de uma igreja, quando parte da estrutura teria ruído.

O site da Pastoral da Criança divulgou a agenda de Zilda Arns no Haiti. De fato, para a tarde de terça-feira, estava prevista uma reunião com os religiosos do país. O corpo da missionária foi encontrado sob os escombros pela embaixatriz do Brasil em Porto Príncipe, Roseana Teresa Aben-Athar Kipman.

Com um sorriso sempre no rosto

Aos 75 anos, Zilda estava sempre pronta a sorrir quando falava de seus projetos para as crianças. Ria como os pequenos costumam fazer. Essa identidade, transformada em números ao longo dos últimos 26 anos, estabeleceu uma rede de esperança fantástica, que reúne milhares de voluntários e estende suas artérias por milhões de comunidades carentes e suas crianças pobres, levando a elas informação, recursos técnicos e alimentação.

O cérebro que concebeu essa rede de boa vontade recebeu a missão do irmão cardeal na volta de uma conferência sobre a miséria da qual ele participou em Genebra, em 1982. A questão proposta ao religioso era como a Igreja poderia ajudar a reverter o quadro de mortalidade infantil no Brasil.

Dom Paulo tinha bons motivos para lembrar da irmã. Cuidar de crianças era algo natural para Zilda desde pequena. Já estudante de Medicina, ao fazer treinamento cirúrgico em cães, percebeu que a salvação dos que estavam ao seu encargo se dava mais pelos cuidados posteriores, como a alimentação, do que pelo ato cirúrgico. Foi um sinal poderoso que a fez enveredar pela pediatria e perceber que a sobrevivência infantil dependia de uma cadeia de providências.

Trabalho não tinha lugar nem hora

O primeiro teste da Pastoral foi feito em Florestópolis, recordista na taxa de mortalidade infantil do Paraná, com 127 mortes a cada mil nascimentos. Em dois anos, os óbitos desabaram para 20 por mil. Zilda estava na trilha certa. Hoje, são cerca de 260 mil voluntários, que acompanham 1,8 milhão de crianças de até seis anos, além de 94 mil gestantes em 42 mil comunidades pobres em mais de quatro mil municípios.

O caminho da médica formada em 1959, em Curitiba, e mãe de cinco filhos que teve com o marido, Aloísio Neumann, nunca teve lugar nem hora. A Pastoral atua nos bolsões de miséria por meio de voluntários que residem nas comunidades e mobilizam as famílias para os cuidados dos filhos. O programa inclui apoio às gestantes, controle de doenças e prevenção, remédios caseiros, projetos de geração de renda e alfabetização de adultos. Um universo de alternativas a serem postas em prática e providências a tomar que tornaram por todo esse tempo curtos demais os dias de Zilda.

Seu escritório? Muitas e muitas vezes os aviões, que a levaram aos diversos continentes e a tornaram uma personalidade conhecida e respeitada pela comunidade internacional, a ponto de ser indicada três vezes seguidas (2001, 2002 e 2003) para o Prêmio Nobel da Paz. Os resultados de seu trabalho garantiam-lhe o respaldo necessário.

Um dos principais projetos da Pastoral é o da Alimentação Enriquecida, que consiste em educar as populações carentes sobre meios de enriquecer a alimentação do dia a dia com produtos disponíveis na região.

Seu trabalho na Pastoral da Criança contribuiu para reduzir drasticamente os índices de mortalidade infantil no Brasil, o que deixa o país bem próximo de alcançar pelo menos um dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: diminuir a taxa de morte de crianças até cinco anos em dois terços até 2015.

Pastoral dos Idosos, mais uma conquista

Apesar disso, Zilda encontrava forças para ainda se dedicar a outra pastoral que construiu, a dos Idosos, fundada em 2004. O projeto beneficia mais de 30 mil pessoas, mas, segundo dizia a coordenadora, a falta de solidariedade por parte da sociedade ainda é uma barreira a ser vencida por quem tem mais de 60 anos.

Em 2008, quando esteve em Tubarão para receber da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) o título de Professora Honoris Causa, Zilda, orgulhosa, contou que a pastoral já contava com cerca de 15 mil voluntários.

– É um trabalho de muito amor e dedicação. Em algumas residências, os voluntários até auxiliam na higiene do ambiente e roupas de cama, mas o que falta ainda é a solidariedade – disse.

O último discurso, dirigido às crianças

Zilda havia viajado domingo para o país caribenho, onde participaria de algumas conferências pela missão de paz do Exército Brasileiro. Seu tema, claro, seriam as crianças, razão de suas únicas queixas. Também eram a razão de sua vida: em cada 10 palavras suas, uma se referia às crianças. Não por coincidência, portanto, o final de sua última palestra, dada na terça-feira em que morreu, foi dirigido a elas:

– Como os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto das árvores e nas montanhas, longe dos predadores, das ameaças e dos perigos, e mais perto de Deus, devemos cuidar de nossas crianças como um bem sagrado, promover o respeito a seus direitos e protegê-las.

Brasil de luto em homenagem à médica

Os governos de Santa Catarina e do Paraná decretaram ontem luto oficial de três dias pela morte de Zilda Arns. O presidente Lula divulgou nota de pesar e de “total solidariedade à família de Zilda Arns e ao povo haitiano. Segundo o presidente, o Brasil está vinculado fraternalmente ao Haiti, em razão de sua presença da força da paz das Nações Unidas no país, a Minustah, coordenada por militares brasileiros.

– A morte de Zilda em plena ação missionária, no Haiti, tem a dimensão trágica e poética do artista que morre em cena – complementou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto.

– Ela morreu de uma maneira muito bonita, na causa que sempre acreditou – disse Dom Paulo Evaristo Arns.

No final da tarde, a família de Zilda foi informada que o corpo já estava em poder do Exército Brasileiro no Haiti, mas ainda não havia data confirmada para o traslado até o Brasil.

Zilda era viúva. Perdeu o marido, Aloysio Bruno Neumann, em 1978, quando ela tinha 44 anos, e não se casou mais. Dedicou-se aos cinco filhos – Nelson, Rubens, Heloísa, Rogério e Silvia (já falecida), todos residentes em Curitiba – e ao trabalho humanitário.

Ontem à tarde, o filho Rubens Arns disse que a morte da mãe foi um choque para todos:

– Ela ainda tinha muita saúde. Ela morreu do jeito que queria (trabalhando) e isso nos conforta um pouco. Para os catarinenses, gostaríamos de dizer que ela sempre amou muito essa terra e tinha orgulho de dizer que era de Forquilhinha. Queremos que ela seja lembrada por ter sido uma pessoa que lutou pelo que acreditava.

Diário Catarinense

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